D. José Cordeiro teme que eutanásia “se torne obrigação” | Diocese Bragança-Miranda

Mais do que um direito, a eutanásia, caso venha a ser despenalizada, pode vir a tornar-se um “dever” para os mais velhos.
Este é um dos principais receios manifestado pelo bispo de Bragança-Miranda, D. José Cordeiro, nas IV Conferências do Paço, que se realizaram no passado dia 29, num auditório da escola Emídio Garcia cheio. A organização esteve a cargo da Comissão Diocesana de Justiça e Paz
“É isso que tenho sentido em muitas pessoas idosas, nas visitas pastorais que estou a realizar, tanto nas casas como nos lares de idosos, nas pessoas mais idosas, o temer que, se passar a ser um direito, depois se torne um dever. Quando se perde a consciência da dignidade humana até ao fim do fim, ela passa a ser descartável, um peso do qual temos de nos libertar. Isso não é admissível. A vida humana não é negociável”, sublinhou o prelado, destacando que “Só há dignidade onde há vida”. “O perigo destas discussões é cair nos eufemismos, que é para aliviar o sofrimento... não, é para matar. Isso é que é preciso ser comunicado e dito. A vida é um dom sagrado. No âmbito da fé da Igreja, o homem é criado à imagem e semelhança de Deus e a vida, a dignidade da pessoa humana, é desde a sua conceção até à sua morte natural. É até ao fim do fim que a vida tem sentido. Não somos nós que lhe damos o sentido, pois recebemos a vida como dom, que tem a fonte em Deus, que é a própria vida. Só pode haver dignidade com vida”, sublinhou D. José Cordeiro.
Já Anabela Morais, responsável pelas unidades de cuidados paliativos no Hospital de S. João e no Centro Hospitala de Trás-os-Montes, em Vila Real, lembra que para uma decisão tão importante como esta, sobre a vida, é preciso “liberdade”.
“A autonomia pressupõe liberdade de escolha e para se ser livre não se pode estar em sofrimento nem se pode estar dependente de terceiros. Obviamente que o sofrimento tem de ser colmatado e depois questionar as pessoas sobre essa vontade”, explicou.
A médica sublinha que “a discussão da eutanásia parece-me precoce em relação ao que devia ser porque primeiro devia lançar-se a discussão dos Cuidados Paliativos, a sua disponibilidade e acessibilidade a quem precisa. Só depois disso se deve perguntar às pessoas se ainda querem morrer. Depois do sofrimento colmatado, provavelmente já não quereriam”, faz notar.
Por outro lado, considera que, a avançar essa pretensão, poderia da azo a que se abrisse “uma autêntica caixa de Pandora”. “Aquilo que se passa noutros países e nos deve servir de reflexão é a tolerância desses casos que não estavam previstos e que foram tolerados mais tarde. De tal forma que, depois, é a própria lei que é alargada para incluir esses casos que previamente não eram previstos. Inicialmente, a eutanásia era prevista apenas para doentes terminais em fim de vida. Depois, passou a ser autorizada e permitida a doentes com demência. Depois, a doentes com depressão. É autorizada agora a pessoas sem qualquer doença e que manifestem vontade de morrer, desde que tenham mais de 70 anos. Está autorizada a crianças em que os pais decidam que não vão ter boa qualidade de vida”, frisa.
Carlos Alberto Rocha, também médico e presidente da Associação dos Médicos Católicos, acredita que, caso seja aprovada a despenzalização, muitos clínicos serão objetores de consciência. “Estou convencido, embora não haja um estudo sério que permita fundamentar a minha resposta, mas a perceção que tenho é que a grande maioria dos médicos não são a favor da eutanásia. Por exemplo, em relação ao aborto, a maioria dos médicos dos vários serviços são objetores de consciência. Há um número grande em Portugal. Extrapolando para a eutanásia, é de admitir que isso aconteça. Não quer dizer que não haja alguns médicos que são a favor da eutanásia e até subscritores do documento que defende a discussão. Mas julgo que é uma minoria”, disse.
Por outro lado, aponta a falta de legitimidade para se votar uma proposta neste sentido no Parlamento no decorrer da atual legislatura. “No caso de esta questão ir para a frente, é um assunto demasiado grave para ser decidido no parlamento atual porque nenhum dos partidos (talvez o Bloco de Esquerda) tinha no seu programa esta questão. Estar a votar uma coisa que não foi sufragada antes das eleições parece-me uma traição ao eleitorado.
Se houver vontade, nesta legislatura, de haver votação sobre esta matéria, vejo como absolutamente necessário que seja através do referendo”, conclui.

 

“Todos temos o direito a viver e a morrer com dignidade”

Ora, para além das questões éticas e morais que se levantam, num âmbito mais prático também se deve ter em conta a própria Constituição portuguesa. Foi para esse fator que chamou a atenção o jurista José Manuel Montenegro. “O nosso Estado promove a dignidade da pessoa humana e vemos várias expressões dessa afirmação ao longo do articulado da Constituição. O artigo quarto diz que a vida humana é inviolável. Mas, infelizmente, se estivermos confrontados com a legislação como a que estamos aqui a debater, estaremos perante uma violação desse item constitucional e a vida humana não é, afinal, inviolável. Conhecemos casos em que esse debate se colocou e o Tribunal Constitucional, ambígua ou não ambiguamente, decidiu pela conformidade de normas que violam a vida humana. Pelo que tenho enormes dúvidas de que vai ser reconhecida a desconformidade constitucional de uma disposição destas. Eu não tenho dúvidas de que seria inconstitucional”, garante.
Montenegro defende ainda que “oferecer dignidade não é oferecer morte”. “Essas discussões têm de ser olhadas com cuidado porque são eufemismos perigosos. Acho que não há ninguém que não defenda que as pessoas têm direito de morrer com dignidade. A questão está em saber se matar corresponde a morrer com dignidade. O que temos de fazer é oferecer condições de dignidade e não desistirmos de ninguém. Dizer que toda a gente vale a pena, seja saudável ou enfermo. Todos temos o direito a viver e a morrer com dignidade”, sublinha.
Este tema incitou à discussão e ao debate no final da sessão, que serviu de esclarecimento e que se deverá repetir noutro âmbito.
D. José Cordeiro considera que “estes debates são decisivos e devem replicar-se nas várias estruturas e organizações da diocese. Estamos a fazê-lo e a propô-lo como um diálogo sereno e humanizador, porque não é nenhuma imposição, mas serve para ajudar todos a tomar uma consciência maior da vida porque o que está em causa é a cultura da vida”, frisou o prelado.
Henrique Ferreira, da Comissão Diocesana Justiça e Paz, explicou ao Mensageiro que “a aprovação desta lei sem debate na sociedade é demasiado precoce”. “O nosso objetivo era, por isso, alertar a sociedade e debater o assunto. Além disso, há a perspetiva da dignidade humana que é preciso ter em conta”, sublinha. Henrique Ferreira faz, por isso, “um balanço muito bom”.

Texto e fotografia: Mensageiro de Bragança