Comunicação de D. José Cordeiro nas Primeiras Jornadas de Liturgia | Diocese Bragança-Miranda

Viver a Liturgia, fonte decisiva de esperança

Bragança, 28 de junho de 2025

 

         Pax na gratidão e esperança! Saudações e felicitações.

Com a “I Jornadas de Liturgia” na querida Diocese de Bragança-Miranda, sentimos o chamamento a uma renovada missão sinodal: “viver a liturgia, fonte decisiva de esperança”. Todos somos convidados a dar passos de esperança e cada um tem o seu serviço na alvorada esperançosa da Páscoa, com uma crescente necessidade de formação integral, contínua e partilhada. Por isso, «a Liturgia é vida e para a vida de todo o Povo de Deus».

Juntos, temos a responsabilidade eclesial de «redescobrir, guardar e viver a verdade e a força da celebração cristã». Todos servimos o mistério de Cristo e o Povo santo de Deus na celebração da Liturgia. O Ano jubilar provoca-nos a que, juntos, sejamos peregrinos de esperança, num grande movimento espiritual, pastoral, sinodal e cultural de esperança. A esperança de semear! A Igreja é peregrina de esperança. Ser cristão é estar em caminho. Ser cristão é ser peregrino. A esperança é sempre peregrina. A alegria da esperança é não esperar para ter alegria, mas esperar porque se tem alegria.

O Cardeal Walter Kasper escreve: «a Igreja não celebra a si própria. A Igreja celebra o sacrifício de Cristo e, celebrando-o, é Igreja». Podemos então perguntar: «como crescer na capacidade de viver em plenitude a ação litúrgica? Como continuar a surpreendermo-nos com o que acontece na celebração diante dos nossos olhos?».

 

  1. Liturgia: esperançar em Jesus Cristo

Antes de mais, o que se entende por Liturgia? Até há pouco tempo ainda se pensava que um liturgista fosse alguém preocupado com rubricas e detalhes cerimoniais que escapavam aos não iniciados.

A Liturgia é a ação da Igreja em que se torna presente Cristo, isto é, a ação salvífica de Cristo na Igreja, assumindo a fisionomia de ação ritual. O centro da Liturgia é a Páscoa de Cristo, o fulcro de toda a história da salvação, ou melhor, o mistério de Cristo como história da salvação.

A Liturgia é a dimensão fundamental para a vida da Igreja: «que é a Liturgia senão a voz uníssona do Espírito Santo e da Esposa, a santa Igreja, que bradam ao Senhor Jesus: “Vem”? Que é a Liturgia senão aquela fonte pura e perene de “água viva”, da qual cada pessoa sedenta pode haurir gratuitamente o dom de Deus (cf. Jo 4,10)?» (Spiritus et Sponsa, 1).

Etimologicamente, a palavra leitourgi,a, composta de lao,j (povo) e e;rgon (ação), significa a ação, o serviço realizado em favor do povo. Assim, o termo, leitourgi,a, indica uma ação comum realizada de maneira pública que exige um povo, uma assembleia, uma comunidade. Ao nível teológico, o e;rgon da Liturgia é teândrico – a obra de Deus e, ao mesmo tempo, a obra do povo do Senhor. A Liturgia é, fundamentalmente uma arte da ação e é uma articulada dinâmica, na qual se interliga a escuta da palavra, a experiência do mistério e a visão da glória. Da parte divina, a palavra, o mistério e a glória. Da parte humana, a ação correspondente de: escutar, experimentar e ver.

Podemos, portanto, dizer que a Liturgia é a fé celebrada nos momentos mais sagrados, a Bíblia rezada, a espiritualidade da Igreja atuada e o vértice e a fonte de toda a atividade pastoral.

  1. Formação litúrgica

A formação para a Liturgia e a formação pela Liturgia de hoje tem de nos ajudar «a reavivar o assombro pela beleza da verdade do celebrar cristão, a recordar a necessidade de uma formação litúrgica autêntica e a reconhecer a importância de uma arte da celebração que esteja ao serviço da verdade do mistério pascal e da participação de todos os batizados, cada qual com a especificidade da sua vocação».

Servir e não se servir. Somos servidores do Servidor e não funcionários do sagrado. Jesus é mestre no servir e interpela-nos a fazer o mesmo. Para quem sou eu? Para quem o faço?

Romano Guardini terá afirmado no final da vida: “tornamo-nos incapazes de Liturgia”, porquanto «a vida litúrgica começa com o silêncio».

Na ação celebrativa da Igreja, Arte e Liturgia são duas palavras que constituem uma única realidade. Ou melhor, deve falar-se da Liturgia da Igreja como uma obra de arte. Na verdade, quando falamos de Liturgia, falamos de Opus Dei ou de Opus Trinitatis, isto é, da obra de Deus ou Obra da Trindade, celebrada pelo seu Povo santo e fiel. A Liturgia é harmonia multiforme na comunhão plural.

A Liturgia cresce com a sua própria celebração. Liturgia, celebração do Evangelho. Podemos afirmar que a arte, que é beleza, contém harmonia. Na música, harmonia indica acordo de vozes e de sons.

Papa Francisco disse: «A Liturgia não é “o campo self service”, mas a epifania da comunhão eclesial. Por isso, nas orações e nos gestos ressoa o “nós” e não o “eu”; a comunidade real, não o sujeito ideal; a comunidade real, não o sujeito ideal. Quando se desejam nostalgicamente tendências passadas ou se querem impor outras novas, corre-se o risco de antepor a parte ao todo, o eu ao Povo de Deus, o abstrato ao concreto, a ideologia à comunhão e, no fundo, o mundano ao espiritual». A celebração litúrgica liberta-nos do nosso individualismo e educa-nos a estar juntos, a compartilhar, a rezar juntos. O individualismo sufoca o sentido da comunidade.

  1. Liturgia, encontro com Jesus Cristo

A alegria do encontro com Jesus Cristo tem um lugar (topos) decisivo na celebração da Liturgia. Na verdade, «No início do ser cristão não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, um rumo decisivo». A evangelização depende totalmente da existência ou não deste encontro com Jesus Cristo. Encontro da parte de quem é evangelizado e de quem evangeliza.

O Papa Francisco, também na introdução da Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium”, dirigiu-se a evangelizadores e foi ainda mais interpelativo: «Convido todo o cristão, em qualquer lugar e situação que se encontre, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por Ele, de O procurar no dia a dia sem cessar». E retoma o tema ao tratar do dinamismo mistérico da Liturgia como lugar de encontro com Cristo: «aqui reside toda a poderosa beleza da Liturgia. [...]A fé cristã ou é encontro com Ele, ou não é».

Jesus Cristo habita na casa de cada coração, conforme o prólogo do evangelho de João: «E a Palavra fez-se carne: estabeleceu a tenda entre nós e contemplámos a sua glória» (Jo 1,14) e ainda no início do livro dos sinais do mesmo evangelho: «Rabi – que, traduzido, significa Mestre” –, onde moras?» (Jo 1,38); «vinde e vereis!» (Jo 1,39).

A Liturgia é lugar do encontro com Jesus Cristo e, simultaneamente, lugar de missão. A propósito, o Papa Francisco advertiu: «Uma celebração que não evangeliza não é autêntica, tal como não o é um anúncio que não leve ao encontro com o Ressuscitado na celebração: ambos, por fim, sem o testemunho da caridade são como o bronze que soa e como o címbalo que retine (cf. 1Cor 13, 1)».

         A centralidade do mistério de Cristo, encarnado, morto e ressuscitado, é o único autêntico paradigma da santidade cristã. O objetivo da Liturgia é o de fazer viver o mistério de Cristo por meio de sinais que se celebram no decorrer do Ano litúrgico que «... distribui todo o mistério de Cristo pelo correr do ano, da Encarnação e Nascimento à Ascensão, ao Pentecostes, e à expectativa da feliz esperança e da vinda do Senhor».

O princípio fundante é que a obra da redenção se realiza na Liturgia. Na Encarnação redentora «... em Cristo “se realizou plenamente a nossa reconciliação e se nos deu a plenitude do culto divino”». Este número da Sacrosanctum Concilium realça a estrutura teândrica da salvação e da Liturgia.

Segundo esta perspetiva conciliar, a Liturgia oferece à evangelização o seu efeito pleno, realizando o que é anunciado. Por tal motivo, o anúncio não pode ser destacado dos sacramentos.

         A presença de Cristo vive-se no mistério da Eucaristia, nas espécies sacramentais, na escuta da Palavra e na Oração: «Cristo está sempre presente na sua Igreja, especialmente nas ações litúrgicas». De facto, Cristo está presente: no sacrifício da Missa e exatamente no sacerdote e no sacramento; nos sacramentos; na Palavra proclamada; na oração comunitária; na assembleia dos fiéis reunida em seu nome.

Na assembleia cultual prolonga-se o mistério do Pentecostes, porque se celebra o mistério pascal de Cristo na Igreja. A partir da Páscoa surge o culto novo como Corpo de Cristo, novo Templo e novo Tabernáculo.

A última razão da presença de Cristo na assembleia encontra-se na realidade mesma da assembleia, que se reúne em nome do Senhor com a presença do Espírito Santo. Nesta assembleia, atualiza-se a Igreja e manifesta-se plenamente na presença visível dos fiéis e na presença invisível de Cristo.

Na verdade, «sem a presença real do mistério de Cristo, não há qualquer vitalidade litúrgica. Assim como sem pulsações cardíacas não há vida humana, do mesmo modo sem o coração pulsante de Cristo não existe qualquer ação litúrgica».

As atitudes do cristão na presença de Deus são diversas, mas cada qual adquire uma importância ímpar. A assembleia litúrgica exige a humanidade dos corações e das vozes. É também expressão concreta da Igreja que requer o respeito dos vários ministérios e funções na celebração. A assembleia celebrativa deve estar aberta ao sentire cum Ecclesia, ou seja, deve ter uma visão católica e universal. A assembleia tem uma projeção escatológica como realidade viva que anuncia aos fiéis o reino dos céus.

A Igreja vive da Liturgia. Esta é a sua dimensão decisiva, não exclusiva. A Liturgia é a primeira escola de fé e vida espiritual. Nela, deixamos de falar sobre Deus, para falar com Deus e agir em Deus. Celebrar, ou seja, frequentar a Liturgia é cultivar em perene surpresa o organismo vivo que é a Igreja, contemplando «a beleza e a verdade da celebração cristã».

A releitura do Concílio e pós-Concílio acontece entre a Reforma e a formação, ou melhor entre o culmen e a fons como expressão e experiência da fé da Igreja. «A Liturgia abre uma porta para a transcendência, uma passagem entre o céu e a terra».

O que esperar neste Jubileu? Uma forte recuperação da esperança: “peregrinos de esperança”, eis o lema. Em particular, um encontro capaz de gerar esperança: «Que seja para todos um momento de encontro vivo e pessoal com o Senhor Jesus “porta” de salvação (cf. Jo 10,7.9); com Ele, que a Igreja tem por missão anunciar sempre, em toda a parte e a todos, como sendo a “nossa esperança” (1Tm 1,1)».

Na realidade, «o mistério da Páscoa é Cristo», como já escreveu Melitão de Sardes, no século II. O encontro com o Senhor crucificado e ressuscitado dá segurança: a esperança não desilude, ou melhor, a esperança não te deixa envergonhado. São Paulo escreve: «Portanto, tendo sido justificados pela fé, estamos em paz com Deus, por meio do nosso Senhor Jesus Cristo. Foi também por meio dele que, pela fé, tivemos acesso a esta graça, na qual estamos firmes e nos gloriamos, assentes na esperança da glória de Deus. Mais ainda: gloriamo-nos também nas tribulações, por sabermos que a tribulação gera perseverança; a perseverança, firmeza; e a firmeza, esperança. Ora, a esperança não desilude, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações por meio do Espírito Santo que nos foi concedido».

Sim, como salienta o Papa Leão XIV: «Jesus não é um muro que separa, mas uma porta que nos une. Devemos permanecer n’Ele e distinguir a realidade das ideologias». No Hodie jubilar dedicado à esperança, sublinhamos ainda mais que a esperança cristã é o próprio Jesus Cristo, a «esperança da glória», o Jubileu eterno no hodie da Liturgia.                                                                                                + José Manuel Cordeiro

CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA, Nota pastoral, Liturgia viva da Igreja, Secretariado Nacional de Liturgia, Fátima 2025, 3.

FRANCISCO, Desiderio desideravi 16.

WALTER KASPER, Rinnovamento dall’origine. Teologia-Cristologia-Eucaristia, Queriniana, Brescia 22025, 180.

FRANCISCO, Desiderio desideravi 31.

FRANCISCO, Desiderio desideravi 34.

FRANCISCO, Desiderio desideravi 62.

ROMANO GUARDINI, Il testamento di Gesù, Vita e pensiero, Milano, 62018, 33.

FRANCISCO, Discurso aos participantes na Assembleia Plenária da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, (14 de fevereiro de 2019).

BENTO XVI, Deus caritas est 1.

FRANCISCO, Evangelii Gaudium 3.

FRANCISCO, Desiderio desideravi 10.

FRANCISCO, Desiderio desideravi 37.

Sacrosanctum Concilium 102.

Cf. Sacrosanctum Concilium 2.

Sacrosanctum Concilium 5.

Sacrosanctum Concilium 7.

FRANCISCO, Discurso aos participantes na 68ª Semana Litúrgica Nacional (24 de agosto de 2017).

FRANCISCO, Desiderio desideravi 1.

T. RADCLIFFE, A arte de viver em Deus. A imaginação cristã para elevar o real, Lisboa 2021, 358.

FRANCISCO, Spes non confundit 1.

MELITÃO DE SARDES, A Páscoa, in Antologia litúrgica, Secretariado Nacional de Liturgia, Fátima, 22015, 442.

Rm 5, 1-5.

LEÃO XIV, Audiência Jubilar, 14 de junho de 2025.

Cl 1, 27.