[1]Sex, 14/04/2017 - 18:49
A fé na Cruz
Sexta-feira Santa – Adoração da Cruz e
Procissão do ‘Enterro do Senhor’ – 14 de abril de 2017
1. O discípulo recebeu-a em sua casa
Aos pés do crucificado, que morre pelos pecadores, ou melhor que morre no meio de dois pecadores, está a Mãe e o discípulo que Ele amava. Aos pés da cruz inicia-se, assim, deste modo surpreendentemente belo, a comunidade dos crentes, a Igreja. Antes Jesus tinha dito: «quando for levantado da terra, atrairei todos a Mim» (Jo 12,32).
Jesus não está sozinho. A Igreja nasce da cruz e nasce como família: «eis o teu filho; eis a tua mãe» (Jo19, 26-27). Claro que não se pode excluir que com estas palavras Jesus cumpre um gesto de amor filial para com a sua mãe. Todavia, a Igreja, viu nestas palavras e nestas personagens, um papel representativo O último ato de Jesus foi um ato fundador da Igreja, na pessoa da mãe e do discípulo.
Aos pés do crucifixo, Maria aparece como a discípula perfeita e modelo de todo o discípulo. «A fé madura é aquela que sabe ver o esplendor de Deus no rosto do Crucificado» (B. Maggioni).
Não basta entender a cruz, é preciso partilhá-la. Também não é necessária outra cruz, mas a mesma cruz de Jesus. Por isso, a Igreja, ao longo dos séculos, soube adaptar esta cruz e continua a fazê-lo. Servir Jesus nas pessoas, amando-os.
Porém, são atuais as palavras do Padre Américo, fundador da Obra da Rua, do qual o nosso grande Padre José Telmo Ferraz é continuador em Portugal e em Angola, quando escreveu: «Jesus Crucificado é outra vez escândalo para uns, vergonha para outros; e para muito poucos, Vida. Há uma apostasia geral na Igreja, mesmo daqueles que a frequentam, que é justamente a pior de todas. Fez-se nova doutrina de um suave amorzinho a Deus e nada de procurar saber a sério do bem do nosso Semelhante. Renunciou-se ao Evangelho. Acreditas no mundo, esperas no mundo – aí tens o Mundo! (...) A caridade faz sangue e cura feridas».
Quantos casos de violência doméstica na nossa cidade e na nossa Diocese! Quantos maus tratos a crianças e a idosos! Quantos jovens à busca de emprego e de felicidade! Quanta pobreza envergonhada! Quantos insultos e intrigas! Quantos especialistas da maledicência! Quanta necessidade material e espiritual! Quantas pessoas e famílias feridas! Quantos lutos mal vividos! Quantos perdas de relação e amizade malcuradas! Quanta angústia sentida!
Cada um de nós é chamado a servir, sob pena de não servir para nada. Contudo, sozinhos não somos capazes de muito e precisamos de nos unir e organizar. Assim, nasceram as Santas Casas da Misericórdia, e tantas outras Instituições da caridade inteligente e organizada: Cáritas Diocesana e Paroquial; Fundações canónicas, Centros Sociais Paroquiais, outras obras sociais e modos de servir com arte e com alma a cidadania e a dignidade inviolável da pessoa humana.
A Santa Casa da Misericórdia de Bragança, conta já 499 anos de serviço do Bem Comum e de com(paixão) à pessoa humana, inspirado na medicina nas Obras de Misericórdia cristã, celebrando a Semana Santa como seu ideário penta secular.
No mundo tão complexo em que vivemos, este continua a ser o enorme desafio!
2. Fazer Misericórdia
A cruz é o sinal máximo da Misericórdia! É o próprio Senhor Crucificado e Ressuscitado que nos diz da capacidade de fazer misericórdia. Cada um faça o que pode fazer para o bem de todos e de cada pessoa que mais precisa.
O Papa Francisco adverte-nos: «O caráter social da misericórdia exige que não permaneçamos inertes, mas afugentemos a indiferença e a hipocrisia para que os planos e os projetos não fiquem letra morta. Que o Espírito Santo nos ajude a estar sempre prontos a prestar de forma efetiva e desinteressada a nossa contribuição, para que a justiça e uma vida digna não permaneçam meras palavras de circunstância, mas sejam o compromisso concreto de quem pretende testemunhar a presença do Reino de Deus» (Mm 19).
Podemos, em cada dia, ao cair da noite, fazer um exame de consciência e interrogar-nos sobre o futuro do que fizemos nesse dia. «Certamente não tem futuro as nossas mesquinhices, as nossas ambições, as nossas durezas, as nossas mentiras, as nossas hipocrisias, as nossas cobiças, as nossas superficialidades, os nossos arbítrios. Tem futuro aquilo que conforta a esperança, aquilo que faz estremecer o coração, aquilo que aproxima de Deus, da verdade, da justiça, aquilo que nos torna interiormente livres e transparentes, aquilo que abre os olhos e o coração, aquilo que dilata a visão» (S. Chialà, monge de Bose).
Fazer misericórdia é construir a paz. «Não existe cristianismo, nem humanidade sem paz. Ou tu és homem [pessoa] de paz, ou não és sequer um homem [pessoa]. Sem paz não é concebível a própria vida: se por vida entendemos um estado harmonioso, um estado de alegria. Tu serás sempre um ser à defesa; quando não te vem de pensar que a melhor defesa é o ataque. É quanto está exposto na clássica fórmula do homo homini lupus [o homem é lobo do homem], à qual se deve contrapor o homo homini deus [o homem é deus do homem] De facto, só quando tu concebes este valor de humanidade como absoluto, esta intangibilidade e sacralidade do homem, tu podes pensar numa possibilidade de paz» (D. M. Turoldo).
3. O fim de vida - Quando a morte crava o seu aguilhão
Estamos aqui nesta igreja que tem servido de velório para muitas famílias chorarem e rezarem os seus mais queridos, aos quais se associam amigos e conhecidos ou simples praticantes das obras de Misericórdia.
O Papa Francisco na exortação apostólica pós-sinodal Amoris Laetitiae escreveu assim: «Compreendo a angústia de quem perdeu uma pessoa muito amada, um cônjuge com quem se partilhou tantas coisas. O próprio Jesus Se comoveu e chorou no velório dum amigo (cf. Jo 11, 33.35). E como não compreender o lamento de quem perdeu um filho? Com efeito, «é como se o tempo parasse: abre-se um abismo que engole o passado e também o futuro. (...) E às vezes chega-se até a dar a culpa a Deus! Quantas pessoas – compreendo-as – se chateiam com Deus». «A viuvez é uma experiência particularmente difícil (...). Alguns, quando têm de viver esta experiência, mostram que sabem fazer convergir as suas energias para uma dedicação ainda maior aos filhos e netos, encontrando nesta experiência de amor uma nova missão educativa. (...) Aqueles que já não podem contar com a presença de familiares a quem se dedicar e de quem receber carinho e proximidade, a comunidade cristã deve sustentá-los com particular atenção e disponibilidade, sobretudo se vivem em condições de indigência» (n. 254).
(...) «De forma muito bela, assim se exprime o prefácio da Missa dos Defuntos: «Se a certeza da morte nos entristece, conforta-nos a promessa da imortalidade. Para os que creem em Vós, Senhor, a vida não acaba, apenas se transforma». Com efeito, «os nossos entes queridos não desapareceram nas trevas do nada: a esperança assegura-nos que eles estão nas mãos bondosas e vigorosas de Deus» (n. 256).
A fé na Cruz é a arte de servir na Esperança com o amor que até é mais forte que a morte!
+ José Cordeiro