«O risco da indiferença» | Intervenção de D. Nuno Almeida nas XXVII Jornadas Culturais de Balsamão | Diocese Bragança-Miranda
Convento de Balsamão, 06.10.2024
1.Quem de nós pode esquecer o menino de t-shirt vermelha e calções azuis, com os ténis ainda calçados e com o rosto mergulhado na água, na areia e na espuma das ondas?
Naquela praia turca de Bodrum o mar devolveu o pequeno corpo de um menino sírio que se afogou durante a tentativa de chegar à ilha de Kos, na Grécia. No dia 3 de setembro de 2015, a sequência de fotografias do repórter Nilufer Demir chega a todos os jornais e sacode o mundo. Mostrando o corpo de Aylan Kurdi, um menino de três anos de Kobane, os media ultrapassam a linha ética que imporia não publicar imagens de cadáveres de crianças. Serviu para mudar muita coisa, dizem muitos comentadores, porque a cena imortaliza a tragédia dos nossos tempos: a via para a Europa é uma estrada letal. O Mediterrâneo tornou-se na rota migratória mais perigosa do mundo.
A foto tornou-se o ícone de uma tragédia sem fim. Demasiados morreram antes, demasiados mergulharam nas águas morreram e continuam a morrer depois de Aylan. É grande o risco de amnésia coletiva abrindo caminho à indiferença e a mais vítimas!
Entre tsumanis humanos e clandestinidade porque é que foi preciso ver o cadáver deste menino para acreditar realmente que no Mediterrâneo estava a acontecer uma hecatombe? A resposta já a tinha dado o Papa Francisco em Lampedusa, clamando contra a “globalização da indiferença”, na histórica jornada da sua primeira viagem apostólica, no dia 8 de junho de 2013.
São muitos os títulos de jornais que colocam a etiqueta de clandestinos em pessoas que ainda nem sequer tocaram o solo europeu e, por vezes, nem sequer as águas internacionais. Clandestino deriva do latim clam (de escondido) e dies (“dia”), quer dizer: “que está escondido durante o dia, oculto”. Indica algo de moralmente ou legalmente proibido.
Na linguagem comum e nos media, tornou-se sinónimo de imigrante. Na maior parte dos casos o uso deste termo é incorreto e injusto. Quem apresenta pedido de asilo político não é condenável pelo ingresso irregular num país. Com base na Convenção de Genebra, o requerente de proteção internacional não é um migrante irregular, mesmo se chega sem documentação ou de maneira irregular. Pela lei o clandestino não existe, não é uma condição jurídica. Emigrar não é crime!
2.É possível ver nos migrantes do nosso tempo, como aliás nos de todas as épocas, uma imagem viva do povo de Deus em caminho rumo à Pátria eterna. As suas viagens de esperança lembram-nos que «a cidade a que pertencemos está nos céus, de onde certamente esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo» (Flp 3, 20).
As duas imagens – a do êxodo bíblico e a dos migrantes – apresentam diversas analogias. Como o povo de Israel no tempo de Moisés, frequentemente os migrantes fogem de situações de opressão e abuso, de insegurança e discriminação, de falta de perspetivas de progresso. Como os hebreus no deserto, os migrantes encontram muitos obstáculos no seu caminho: são provados pela sede e a fome; ficam exaustos pelo cansaço e as doenças; sentem-se tentados pelo desespero.
Mas a realidade fundamental do êxodo, de qualquer êxodo, é que Deus precede e acompanha o caminho do seu povo, dos seus filhos de todo o tempo e lugar. A presença de Deus no meio do povo é uma certeza da história da salvação: «o Senhor, teu Deus, vai contigo; não te deixará sucumbir nem te abandonará» (Dt 31, 6). Para o povo saído do Egito, tal presença manifesta-se de diversas formas: uma coluna de nuvem e de fogo indica e ilumina o caminho (Ex 13, 21); a tenda da reunião, que guarda a arca da aliança, torna palpável a proximidade de Deus (Ex 33, 7); a haste com a serpente de bronze assegura a proteção divina (Nm 21, 8-9); o maná e a água (Ex 16 – 17) são os dons de Deus para o povo faminto e sedento. A tenda é uma forma de presença particularmente querida ao Senhor. Durante o reinado de David, Deus recusa-Se a ser encerrado num templo preferindo continuar a viver numa tenda e poder assim caminhar com o seu povo «de tenda em tenda, de morada em morada» (1 Cr 17, 5).
Muitos migrantes fazem experiência de Deus companheiro de viagem, guia e âncora de salvação. Confiam-se-Lhe antes de partir, e recorrem a Ele em situações de necessidade. N’Ele procuram consolação nos momentos de desânimo. Graças a Ele, há bons samaritanos ao longo da estrada. Na oração, confiam a Ele as suas esperanças. Quantas bíblias, evangelhos, livros de orações e terços acompanham os migrantes nas suas viagens através dos desertos, rios e mares e das fronteiras de cada continente!
Deus caminha não só com o seu povo, mas também no seu povo, enquanto Se identifica com os homens e as mulheres que caminham na história – particularmente com os últimos, os pobres, os marginalizados –, prolongando de certo modo o mistério da Encarnação.
Por isso o encontro com o migrante, bem como com cada irmão e irmã que passa necessidade, «é também encontro com Cristo. Disse-o Ele próprio. É Ele –faminto, sedento, estrangeiro, nu, doente, preso – que bate à nossa porta, pedindo para ser acolhido e assistido» (Homilia na Missa com os participantes no Encontro «Libertos do medo», Sacrofano, 15/II/2019). O Juízo Final narrado por Mateus, no capítulo 25 do seu evangelho, não deixa dúvidas: «era peregrino e recolhestes-Me» (25, 35); e, ainda, «em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (25, 40). Então cada encontro ao longo do caminho constitui uma oportunidade para encontrar o Senhor, revelando-se uma ocasião rica de salvação, porque na irmã ou irmão necessitado da nossa ajuda está presente Jesus. Neste sentido, os pobres salvam-nos, porque nos permitem encontrar o rosto do Senhor (cf. Mensagem para o III Dia Mundial dos Pobres, 17/XI/2019).
3.O bem comum pode ser nacional e universal. Dois âmbitos que não devem ser contrapostos: «Os cidadãos cultivem com magnanimidade e lealdade o amor da pátria, mas sem estreiteza de espírito, de maneira que, ao mesmo tempo, tenham sempre presente o bem de toda a família humana, que resulta das várias ligações entre as raças, povos e nações».
São, por isso, inaceitáveis as correntes inspiradas no “nacionalismo de exclusão” que vêm ganhando força em vários países. Não estamos imunes a um clima de medo e desconfiança em relação aos estrangeiros, bem como o perigo de os encarar como concorrentes a postos de trabalho ou ameaça ao nosso nível de vida, esquecendo que muitos de nós buscam o mesmo estatuto e nível de vida noutros países.
Neste ponto vale, por isso, a pena prestar atenção às várias intervenções do Papa Francisco, entre as quais a Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2018, a propósito das migrações: «Alguns consideram-nas uma ameaça. Eu, pelo contrário, convido-vos a olhá-las com um olhar repleto de confiança, como oportunidade para construir um futuro de paz». Daí a sua insistência em acolher, proteger, promover e integrar, os quatro verbos em que se devem inspirar as políticas dos governos e as ações das sociedades de acolhimento.
Só assim temos migrações seguras, ordenadas e regulares, que podem até contribuir para o desenvolvimento quer dos países de origem, quer de destino dos migrantes.
Veja-se o que, nos últimos tempos, tem acontecido no nosso País. Segundo os dados mais recentes do Observatório para as Migrações, os contributos financeiros dos imigrantes para o Estado português são maiores do que as prestações de que beneficiam. Isto, apesar de para eles ser maior risco de pobreza e privação material.
Para além do aspeto financeiro, podemos ainda usufruir daquilo que o Papa Francisco afirma sobre eles na mesma mensagem: «Não chegam de mãos vazias: trazem uma bagagem feita de coragem, capacidades, energias e aspirações, para além dos tesouros das suas culturas nativas, e deste modo enriquecem a vida das nações que os acolhem». E como resposta a quem receia a perda de identidade no contacto com outras culturas, acrescenta: «Uma cultura consolida-se através da abertura e do confronto com as outras culturas, desde que haja uma consciência clara e madura dos próprios princípios e valores».
Oração
Deus, Pai omnipotente,
somos a vossa Igreja peregrina
a caminho do Reino dos Céus.
Habitamos, cada qual, na própria pátria
mas como se fôssemos estrangeiros.
Cada região estrangeira é a nossa pátria
e contudo cada pátria é, para nós, terra estrangeira.
Vivemos na terra,
mas temos a nossa cidadania no Céu.
Não nos deixeis tornar patrões
da porção do mundo
que nos destes como habitação temporária.
Ajudai-nos a não cessar jamais de caminhar,
juntamente com os nossos irmãos e irmãs migrantes,
rumo à habitação eterna que Vós nos preparastes.
Abri os nossos olhos e o nosso coração
para que cada encontro com quem está necessitado,
se torne um encontro com Jesus, vosso Filho e nosso Senhor.
Amen.
+Nuno Almeida
Bispo de Bragança-Miranda